Ensaio Sobre A Inveja
Senhora Inveja mora num cortiço que, de tão mafuá, pode ser chamado de cabeça-de-porco. Tem como vizinhos mais próximos D. Solidão de uma lado, Sra. Incompetência de outro e o Sr. Amargura no apartamento da frente. A Inveja é assim: mora num lugar sujo, cercada de gente ruim. O problema é que ela está incrustada nas áreas mais nobres da região. Ou seja: sua vizinhança se espalha por entre todos os moradores, sendo quase impossível alguém afirmar honestamente que não a conhece. Por isso a encontramos, durante a semana, usufruindo o mesmo banco da praça por onde caminha a Srta. Paixão. Ou almoçando no mesmo restaurante a quilo que o Dr. Trabalho. Ou ainda: malhando na academia da mocinha Juventude. A Inveja também pode ser vista aos finais de semana passeando no shopping onde transita a família - esposa e filhos - do Sr. Consumo e, como arremate, badala nas melhores nights, com a turma do jovem Prazer. Assim, Sra. Inveja, a despeito da repugnância automática que ela provoca, é presença constante nos arredores e, apesar da luta generalizada para dela se desvencilhar, sua nefasta presença continua a incomodar a todos. Todavia, existe um seleto condomínio por onde ela não transita. Neste lugar, seguranças armados de raios paralisantes impedem sua entrada, deixando-a indignada. Ela já pulou muros, escondeu-se entre cargas, invadiu sorrateiramente à noite, mas é sempre surpreendida e, então, expulsa. A verdade é que, neste local, ela até consegue entrar, mas não pode permanecer. Detectores sensibilíssimos sempre sinalizam sua presença e ela é sempre obrigada a se retirar. Nestes momentos, ela costuma bradar revoltada: "eu voltarei, eu voltarei!", mas os moradores se entreolham silenciosamente e voltam às suas casas, fechando suas portas e afirmando repetidas vezes para si mesmos que ela realmente pode voltar, mas que é tarefa comum expulsarem-na quantas vezes forem necessárias. Isto tudo porque o proprietário mais antigo e fundador da vila foi o Dr. Amor. Ele se mudou para as cercanias desde que aquela fora inaugurada e ali fincou raízes com sua família. Seus muitos descendentes originaram as famílias Caridade, Fé e Amizade e hoje em dia todos encontram-se reunidos na mesma localidade, preservando e trabalhando em prol do lugar que fora desbravado por seu antecessor mais ilustre. E todos sabem que a Sra. Inveja é moradora antiga e popular, mas também reconhecem que abrigá-la é expor-se desnecessariamente à sua influência sutil e destruidora. E que abrir as portas de seus lares para ela, é condenar-se a contaminarem seus afetos com o fel que corrói até as melhores intenções. No lugar onde o Amor é referência, não pode haver guarida para a Inveja. Todo esforço para mantê-la afastada é a salvaguarda dos afetos sinceros e queridos, que não podem e não serão maculados por nada que seja menos que sublime.
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