13.8.06

Para Ana.

Era uma vez uma menina que possuía um dom, que também era uma maldição. Ela podia ver tudo o que as pessoas escondiam dos demais. Todas as “câmaras secretas” de seus seres tornavam-se perscrutáveis pela menina. O dom consistia no fato de que isto dava um poder enorme à garotinha, que possuía conhecimentos indisponíveis aos outros. A maldição era que esta percepção independia de sua vontade e mesmo que ela preferisse não ver (saber), lá estavam expostas ao seu escrutínio, todas as mazelas humanas.
Chegou um momento no qual a menina – extenuada devido a tantas informações involuntariamente colhidas – pensou em desistir. Ela não queria mais saber. Admirava a ignorância como uma bênção, considerava eleitos os que nada viam – ou que fingiam nada ver. Então, no auge de sua dor, rezou com toda força para seu anjo da guarda e quando este se tornou visível, ela lhe fez um pedido: não queria mais saber! Do que adiantava um saber que só causa isolamento e dor? Para que serve um conhecimento que não pode ser compartilhado, pois ninguém é capaz de alcançá-lo?
Seu anjo ouviu pacientemente todas as suas justificadas queixas (ao contrário dos humanos, os anjos são SEMPRE bons ouvintes). E então, quando a menininha acabou sua argumentação, acreditando ser plenamente atendida em sua solicitação, o anjo a tomou pela mão e delicadamente disse: “não”.
Após um breve intervalo em que esteve estupefata, a menina começou a chorar. Com força e mais força até que ela parecia que ia explodir (ela lera uma vez que devíamos proceder assim quando desejávamos muito alguma coisa). E entremeados ao seu choro, ela repetia todos os argumentos que já havia dito ao anjo. Este, por sua, manteve sua placidez usual e novamente esperou que sua protegida concluísse sua fala. E então, ele sentenciou:
- “Menininha, por que sofres assim se foi você mesma quem pediu esta missão?”
- “Missão? Co, como assim”? – ela replicou, ainda soluçando.
- “Sim, missão. A você coube a tarefa de enxergar além da carne e de ouvir além do som. A você coube o trabalho de saber o que aos demais permaneceria obscuro e utilizar este conhecimento em prol da humanidade”.
- “Mas como eu poderia fazer isso? Eu nem mesmo sei o que fazer com todas essas coisas que eu sei e que eu não queria saber! Elas só me trazem angústia e isolamento, pois ninguém as compreende quando eu as falo”.
-“Só que não lhe cabe fazer os outros verem aquilo que você vê. Este conhecimento só pertence a você. Sua tarefa está em, conhecendo profundamente a alma humana, ser capaz de guiá-los na direção do melhor. Se todos já conhecessem o caminho, não necessitariam de ajuda. Mas então sua missão estaria cumprida e você não precisaria mais estar aí.” – explicou o anjo.
-“Quer dizer que eu tenho como dever enxergar e ouvir além e mesmo assim continuar caminhando com estas pessoas e ainda ajudá-las a construírem o melhor”?
-“Sim. E eu só posso te dizer que SEMPRE estarei contigo, mesmo e principalmente, nas horas de maior sacrifício. Mas para tal, é necessário ratificar uma exigência: é preciso que você também esteja ao lado daqueles que não agem corretamente, tentando a todo o momento impedir-lhes a queda diante do abismo”.
E assim o anjo, após um sorriso de bênção, se desfez diante de seus olhos. E a garotinha ainda ficou um bom tempo ali, parada, refletindo como pôde ter sido tão maluca de algum dia ter pedido esta tarefa a Deus.