15.9.08

A tartaruga em cima do muro.

Ela não sabia como havia ido parar lá. A última coisa da qual se lembrava é de estar seguindo tranquilamente por seu caminho há muito conhecido e ter visto uma borboletinha passar. Então, ela achou que poderia seguí-la e, ao fazê-lo, distraiu-se e quando deu por si, pronto! estava lá: no alto do muro.
E agora? Como fazer pra sair de lá?
A primeira e mais óbvia possibilidade era a de se jogar. Mas isto era IMPENSÁVEL! Como ela, uma simples tartaruga, poderia pular do alto de um muro? A outra possibilidade - bem mais viável - era procurar uma saída. Sim! Uma rampa, ou mesmo alguns degraus, nos quais ela pudesse, lentamente, arrastar sua carapaça pesada até alcançar seu velho e seguro chão. Mas, a tartaruga olhava, olhava, olhava e não via nenhuma descida! Nenhuma ao menos!
Então ela pensou, pensou e decidiu: ia ficar ali pra sempre! Afinal, de quem era o problema? Ela poderia ser feliz ali! Ao longo da evolução, as criaturas que não foram extintas foram justamente aquelas que se adaptaram à evolução, portanto nada mais lógico que ela dar início a uma nova raça de tartarugas: as que vivem em cima do muro! Além disso, quem disse que as tartarugas não podem ter o muro como habitat? É apenas uma convenção social, culpa da sociedade, que impõe à minoria tartarugal sua cultura midiática, que massifica a idéia de que os bichos não foram feitos pra viverem em cima do muro.
Mas não, ela não! Ela seria uma precursora de uma nova era! Uma criatura avant guarde, que provaria ao mundo que era possível sim viver daquela forma.
Sua primeira preocupação era com a alimentação. Mas esta logo foi sanada: havia inúmeras árvores por perto e ela poderia se alimentar das folhas e frutos que caíssem eventualmente. Por um milésimo de segundo, um frio percorreu sua espinha: e se faltasse alimento? Não, ela não pensaria nisto! Era uma tartaruga otimista e certamente, haveria de cair o suficiente para sua manutenção.
Depois, ela pensou nas pessoas das quais gostava. Ela não mais as veria. Bom, pensou ela, quem realmente gostar de mim, virá aqui me visitar. É isto que os amigos fazem.
E assim, ela ficou, ficou, ficou... E o tempo passou. Um belo dia, ligeiramente entediada, mas sem enxergar outra opção, ela viu a mesma borboleta passar. E, novamente, resolveu segui-la. Levantou seu casco duro e foi, se equilibrando, e acompanhando os gracejos daquele bichinho voador, tão leve, tão livre e, ao mesmo tempo, tão cativo. Neste encantamento, distraiu-se e caiu do muro.
Poft! Um barulho ensurdecedor.
Sua primeira reação foi o pânico: caíra! Meu Deus! Voara no chão! Estava de cabeça pra baixo! Teria quebrado suas patinhas? Teria arranhado seu casco? Teria machucado o pescoço? Mexeu um pé. Depois outro pé. Tudo bem, tudo normal. Encheu-se de coragem, e pôs novamente em pé, num rápido e firme movimento. Virou o pescoço prum lado, virou o pescoço pro outro. Nada! Nenhum arranhão. Nenhuma machucadinho. Que fantástico! Suas pernas não eram tão frágeis como pensava, nem seu casco tão mole como supunha!
Neste momento, lembrou-se da borboletinha que o fizera experimentar o prazer de subir, o medo de se jogar e, finalmente, a incógnita da queda e resolveu contar-lhe tudo o que aprendera. Então, olhou ao redor e ela já não estava mais lá. Nem para saber de seus padecimentos, nem de sua glória. Se fora. Assim como surgiu, desaparecera de sua vida. E a tartaruga ficou ali, remoendo tudo aquilo que vivera e que não poderia compartilhar com a responsável porque demorara tempo demais para perceber o valor das coisas.
Ps: texto antigo, só publicado quando as profecias se cumpriram.

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